“Somos
simples servidores: fizemos o que devíamos fazer”
(Lc 17,10)
Os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta
de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso,
suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde
diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão
de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a
partir de fora; ela tem que crescer a partir de dentro, como o insignificante
grão de mostarda que, embora diminuto, contém vida exatamente igual que a maior
das sementes.
A fé não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma
“travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente
insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não é um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma
série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal
fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Na Bíblia,
a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.
Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada que
ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco
fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar,
de sentir e de agir.
A fé supõe o descentramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como
centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para
o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus
ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da
vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em
nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está
dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos
possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e
lançar-se a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva
da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança
em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também
confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude
humana.
Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte
e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S.
Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gal. 5,3).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola
dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí
o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima
deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por
recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola
revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não
pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias
e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma
gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo
espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são,
antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos
outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios
méritos. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas
em si mesmos. A Salvação “por pontos” é totalmente contrário ao evangelho.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de
Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade
do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma
espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.
Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar
sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que
Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.
Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de
transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da
história. Trabalho que se faz com amor; “o trabalho é a fé que se faz
visível”. Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos
fazer”.
Não está correta a tradução: “somos servos inúteis”. Se o servo fosse
inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é
extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o
servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor,
Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.
Ao situar nosso trabalho cotidiano na linha da colaboração com a
atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo
fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-lo em um mecanismo ou dinâmica de
autocentramento, de busca exclusiva e muitos vezes compulsiva de nós mesmos e
de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso
modo de trabalhar, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos
outros...
São vários outros elementos que contribuem para fazer de nosso trabalho
uma “experiência espiritual”:
a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a
capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e
relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e
nos é dado) nos faz viver nosso trabalho como serviço e o liberta radicalmente
de suas dimensões de rotina, de carga..., e o vai situando na linha de uma
experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e
ajudar.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o
mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por
isso, “cansa” menos, “desgasta” menos... Se vivemos a partir da gratidão,
ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa
entrega ou ao nosso serviço.
Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o trabalho,
seja ele qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está
orientado para o Reino. Não
é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer
trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino de
Deus. Todo trabalho é
nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção
presentes nele. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos
seus “servidores”. A verdadeira “experiência espiritual ” é estabelecer com o
“Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir
da gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao
“Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos
desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa do
trabalho, pois este passa a ser “templo” do encontro com Deus trabalhador e de
colaboração com os outros.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na oração: Precisamos alimentar uma outra relação
com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperação com o Deus trabalhador e
com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos
distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho
com humor e criatividade.
* Seu trabalho cotidiano: ativismo ou “ação discernida”? Busca de
recompensas ou espaço de colaboração com o Deus trabalhador?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Fonte: Catequese Hoje
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