3 de out. de 2013

"O Trabalho é a fé que se faz visível"

“Somos simples servidores: fizemos o que devíamos fazer” 
(Lc 17,10) 

Os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.

Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela tem que crescer a partir de dentro, como o insignificante grão de mostarda que, embora diminuto, contém vida exatamente igual que a maior das sementes.

A fé não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.

A fé não é um ato nem uma série de atos,  nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.

Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada que ver com a quantidade.

Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.

A fé supõe o descentramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.



É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-se a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.

Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.

Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza  “pela prática do amor” (Gal. 5,3).

E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.

No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.

Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.

As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A Salvação “por pontos” é totalmente contrário ao evangelho.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.

Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.

Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da história. Trabalho que se faz com amor;  “o trabalho é a fé que se faz visível”. Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos fazer”.

Não está correta a tradução: “somos servos inúteis”. Se o servo fosse inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor, Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.

Ao situar nosso trabalho cotidiano na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-lo em um mecanismo ou dinâmica de autocentramento, de busca exclusiva e muitos vezes compulsiva de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de trabalhar, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...

São vários outros elementos que contribuem para fazer de nosso trabalho uma “experiência espiritual”:
a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos faz viver nosso trabalho como serviço e o liberta radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga..., e o vai situando na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.

Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos... Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.

Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o trabalho, seja ele qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino de Deus. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.

A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”. A verdadeira “experiência espiritual ” é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos  desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa do trabalho, pois este passa a ser “templo” do encontro com Deus trabalhador e de colaboração com os outros.

Texto bíblico:  Lc 17,5-10

Na oração: Precisamos alimentar uma outra relação com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperação com o Deus trabalhador e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho com humor e criatividade.

* Seu trabalho cotidiano: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração com o Deus trabalhador?


Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI


Fonte: Catequese Hoje

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